Viés do Caráter
A competitividade do mercado aliada à faixa etária conduziram Severo para um emprego
com salário inferior e profissão diversa da que habitualmente exercia.
Da metalúrgica de grande porte onde por mais de duas décadas laborou como Prensista,
viu-se obrigado a mudar de profissão após a quinta década de vida.
Estava fora do mercado - pouco estudo, idade avançada segundo os padrões seletivos.
Foram seis meses batendo de porta em porta em todas as empresas possíveis e nada.
Até que certo dia, na feira de domingo encontrou o conterrâneo Francisco.
- Ô Severo já arrumou emprego?
- Que nada Francisco, graças a Deus não pago aluguel, porque se dependesse teria sido
despejado falta de pagamento.
Ainda bem que Anete faz umas faxinas, não fosse isso a gente passava fome.
- Tenho um emprego pra tu!
- Não me diga homem!
Nem preciso dizer, pego qualquer serviço!
Pois é Severo, quem me disse do emprego foi a Toinha.
- Toinha?
Sim seu menino!
Aquela galega que de vez enquanto encontro no forró.
Francisco, pois eu sei quem é!
Todo sábado tá na casa de minha irmã Zeferina.
Deixa estar que de hoje a sete vou falarei com ela, quem sabe me ajuda...
Anete dedicada como sempre fazia de um tudo para manter a paz na família, se desdobrava
fazendo faxina em várias casas para que o pão não viesse a faltar.
Os três filhos já adultos auxiliavam no que podiam.
Tiveram que abandonar os estudos para trabalhar.
Severo costumava chegar a casa, abraçar a esposa, perguntar pelos filhos, dar um
agrado no Pitoco – o vira-latas da família, depois do jantar ficava horas ouvindo Luiz
Gonzaga, Dominguinhos, Elba Ramalho.
Com todo o sufoco em razão do desemprego, seu sorriso se fazia lindo quando lhe
perguntavam pelo primeiro neto que estava a caminho.
- Anete, tu sabe quem encontrei hoje?
Diga meu nego, falou a doce esposa.
Francisco, tu se lembra dele?
- O filho de dona Eleutéria?
Sim!
Ele mesmo!
Pois então, deu-me umas dicas pra
eu falar com Toinha, disse que talvez ela pudesse me
arrumar um emprego.
Sábado darei um pulo até a casa dela.
- Que bom, quem sabe tu sai deste desespero homem!
Ah, queria te contar Severo, Zuleide chega semana que vem de Crato, disse que fica uns
dias aqui em casa.
A bela morena, irmã mais nova de Anete viria passar dois meses na cidade grande.
Acabara de sair do terceiro casamento aos trinta anos de idade...
No final de semana seguinte Severo foi até a casa de Toinha.
Ao saber qual seria o emprego ficou meio receoso, mas disse pra si mesmo – todo
trabalho é honesto! Vou encarar este é com dignidade!
Marcou de na segunda-feira logo cedo falar com o gerente do negócio, antes de
confirmar para a família a conquista do novo emprego.
Passava do meio dia, (naquela tarde Anete estava em casa) quando chegou com a notícia.
Mulher!
Encontrei um emprego!
- Graças a Deus Severo, eu não lhe disse que na hora certa o socorro viria?
Que emprego arrumastes homem?
Anete a partir de quarta-feira trabalharei de segurança.
- Segurança?
Indagou a esposa assustada, pois sabia que a profissão
do marido era outra.
- Sim segurança!
Mas é tranquilo, o lugar é sossegado.
Vou participar da equipe, tem dois trabalhando à noite - els me ensinarão o trabalho.
Segurança de que mesmo Severo?
Segurança de Motel.
De que?
Isso mesmo que você ouviu Anete de Motel!
O que é que tem é um trabalho como outro qualquer.
Salário menor, função diferente, emprego que poderia dar o que falar, nada disso incomodou
Severo – bastava saber que ganharia o pão com honestidade – atitude dos sábios.
Preencheu a papelada, iniciou na mesma semana.
Toinha trabalhava de cozinheira no estabelecimento havia 10 anos.
Raramente a encontrava, pois foi contratado para o período da noite.
Severo se habituou à nova atividade - carteira registrada, vale-transporte, salário razoável e
até convênio médico.
Normalmente trabalhava com mais dois colegas por turno – Rivaldo e João.
Rivaldo, o mais antigo de casa quando Toinha entrou no emprego ele já trabalhava lá.
Quando o movimento diminuía auxiliava na limpeza da recepção.
Almoço de domingo, filhos em casa, alegria geral.
- Severo, quanto tu tem folga?
- Só na sexta feira próxima Anete.
- Pois vai dar certinho, Zuleika chega neste dia, vamos esperá-la na rodoviária.
Mesmo cansado não negava nada para a esposa, saiu do serviço na sexta pela manhã,
marcou de encontrá-la no terminal rodoviário, foi direto para lá esperar a cunhada
até o desembarque - previsto para o meio dia.
- Que saudades Anete!
Severo, obrigada por vir aqui me buscar!
- Olhe Anete o que mainha mandou pra tu – carne de sol, tapioca, rapadura e
manteiga de garrafa.
E tem também um litro de mel purinho, do bom pra tu fazer xarope !
Após as notícias dos parentes especialmente as novidades, seguiram para casa
.
Um quarto modesto esperava por Zuleika – ficaria uns dois meses.
Anete, onde tem forró por aqui minha irmã?
- Mas tu nem bem chegou e já quer ir para os bailes?
Sim mana, sou doida por um arrasta pé!
Tem um perto da rodoviária de casa todo sábado, vai até o dia nascer, lotado!
Pois é lá mesmo que vou amanhã!
O forró aos sábados tornou rotina para Zuleika, não demorou estava de caso com
um dos frequentadores.
Namoro todos as noites –antes da uma da manhã nem adiantava procurá-la.
Confidenciara para a irmã que estava na verdade se encontrando em dias alternados
com dois homens, para ver qual daria certo...
Não sabia o local de trabalho do cunhado era o mesmo que se refugiava com um dos amores.
Até que um dia viu-se sem saída – o segundo pretendente antecipou o convite do dia
seguinte – o mesmo motel!
O que fazer – pensou Zuleika, sem querer perder a chance de continuar com os dois
relacionamentos até se decidir...
Não poderia aparecer com outro acompanhante, não conseguiu convencer o amado para
mudar de local.
Passou a noite em claro, até que veio a brilhante
ideia - pegaria sorrateiramente a carteira de
identidade da irmã!
Respirou aliviada quando viu a possibilidade de não contrariar o pretendente - quem sabe
seria ele o príncipe encantado.
Quando todos na casa estavam no quinto sono pegou sorrateiramente a bolsa de Anete.
Mal abriu, a preciosidade estava diante dos olhos!
Nem precisou procurar.
Rapidamente subtraiu o documento.
Em seguida recolheu-se ao pequeno quarto para o sono dos despreocupados, não sem antes
guardar cuidadosamente a preciosidade.
Acordou mais cedo do que de costume com o barulho vindo da cozinha.
- Vamos mais eu no médico Zuleika?
Vou não Anete, quero descansar.
Lá pelas 10 quero visitar a Zeni do Manoel - uma conhecida da terra natal.
Há dias aguardando a liberação do exame pelo convênio, Anete foi mais cedo para garantir.
A consulta seria às 14 horas.
Antes das 10 estava na clínica.
- Seu documento Senhora - pediu educadamente a recepcionista.
Anete virou a bolsa dos avessos não encontrou a identidade.
Tem pelo menos um documento com foto Dona Anete?
-Espere, aqui está a minha carteira profissional.
Finalmente realizaria a tomografia, após esperar mais de 6 meses.
Sentou-se matutando onde teria deixado a RG.
Quando foi chamada para realizar a tomografia da coluna lombar passava das 15 horas.
Severo estranhou a demora da esposa.
Saiu para trabalhar como de costume na hora da Ave Maria e nada de Anete chegar.
Ao regressar a esposa dormia.
Procurou acordá-la para um carinho e nada.
Os medicamentos ingeridos no dia anterior a deixaram sonolenta.
Severo estranhou a recusa.
Pela primeira vez sentiu-se rejeitado.
Zuleika chegou na hora do almoço – a noite de amor com o pretendente de tão boa
varou o amanhecer.
Assim que entrou em casa deu um
jeito de colocar a identidade da irmã no lugar.
Severo, decepcionado com a atitude de Anete recolheu-se no canto da cama.
Quando acordou estava quase que na hora de ir para o trabalho.
A bateria de exames deixou Anete entregue.
A queixa das fortes dores nas costas aumentavam dia a dia.
Naquele momento Severo falava, mas parecia que a esposa não ouvia - sentia-a
cada vez mais longe.
Miolo mole juntava o fato de a mulher ficar o dia inteiro fora com a aparente indiferença.
O resultado dos exames sairia após 10 dias.
Anete voltou com um receituário enorme e a recomendação médica para que repousasse,
a fim de que não fosse obrigada a ingerir altas doses de analgésicos.
Sentia-se enfraquecida, porém ocultava da família.
Não queria despertar preocupações.
Ao sair par ao trabalho já no anoitecer Severo levou consigo a rejeição sofrida na manhã, a
apatia da esposa durante o dia, a demora no tal do exame – a cabeça fervia.
As duas da madrugada tinha a pausa do café, quando colocava o papo em dia com os
colegas de trabalho.
- Que cara é essa Rivaldo?
É nada não Severo, hoje estou meio aborrecido...
Que nada!
Conheço você Rivaldo, vamos homem desembucha!
Severo viu a expressão de medo no rosto magro do amigo.
Mais que isso – pavor.
Após alguns minutos de total silêncio Rivaldo danou-se a falar.
- Severo, tu sabe que faço a limpeza da recepção todas as noites aqui não sabe?
Sim!
E o que é que tem isso?
- Tu sabes que lá as moças recebem os documentos do povo que vem namorar aqui não sabe?
Sabe que a norma da empresa é o sigilo, no que sempre respeitei até porque nada tenho a ver
com a vida dos outros, aqui é nosso trabalho.
- Vamos homem diz logo, pra que tanto rodeio?
E esta cara de espanto, morreu alguém foi?
Severo meu amigo, fique calmo.
Nem sei por onde começar...
Mas ontem quando Edilma, uma das meninas da recepção faltou.
Como sempre trabalham em duas, Marinalva ficou sozinha, por isso me chamou várias vezes
para ajudar.
Pois então, quando ela foi ao banheiro estavam alguns documentos separados para
entregar aos clientes quando saíssem.
E eu de enxerido fui dar uma espiada...
Sim, e dai Rivaldo?
Espiada em que?
Em quem estava namorando por aqui Severo!
E daí?
Coisa feia, não é seu trabalho homem!
Rivaldo tremia...
Sei que não é, mas sou seu amigo preciso te contar
uma coisa muito séria.
Pois conte logo!
Os documentos...
Rivaldo emudeceu por alguns segundo disparando
em seguida.
- Tu vai é endoidecer, mas não tem jeito, sou seu amigo - vi a carteira de identidade
de sua mulher aqui!
O que?
É isso mesmo Severo!
Sua esposa esteve aqui com um “cabra”, tu foi traído!
- Valei meu Padre Cícero, como Anete pode fazer isso!
Em seguida grossas lágrimas escorriam na face.
Depois, o silêncio.
Sentindo-se melhor Anete acordou mais cedo, preparou o café ao gosto do marido – cuscuz,
inhame, carne de sol, manteiga de garrafa, café.
Sabia que as dores tinham causa à ser descoberta – o médico havia dito.
Severo entrou em casa cego, foi direto par ao quarto.
Retornou com a velha arma em punho.
Olhou bem para a mulher, nada disse – foram três tiros
certeiros.
Transtornado esperou a chegada da viatura.
Assumiu o ato.
Limitou-se a dizer para o delegado – lavei a minha honra.
Zuleika quando soube do acontecido calou-se sem o menor remorso.
Após o funeral da irmã decidiu ficar de vez na capital.
Família destruída, Severo preso.
Emprego de diarista, moradia de graça.
Era o incentivo que precisava, do nada deixou os bailes,
os dois namorados – ao final nenhum deles conquistara seu coração.
Chorava copiosamente diante dos familiares.
Como representava!
A vida da irmã ceifada de forma violenta em razão do documento temporariamente
furtado...
Tornou-se assídua frequentadora das missas dominicais.
Convenceu os sobrinhos a deixá-la ocupar o quarto da falecida,com os pertences,
objetos pessoais e tudo mais.
Cristã fervorosa que se tornara aproveitou a folga no feriado para visitar Severo no presídio.
Até então tinham se passado seis meses desde a fatídica manhã.
Caprichou no visual – como nos tempos dos bailes.
Preparou comidas típicas, algumas roupas, doces e o santinho da falecida -pois como
Severo foi detido logo após o crime tudo ficou para trás.
Os três filhos – duas moças e um rapaz, traumatizados com o ocorrido romperam relações
com o pai.
Quando avistou o cunhado vestido com o uniforme cor de laranja, não se conteve
a emoção.
Severo também chorou ao tempo que falava da saudade que sentia dos filhos, da
vida arruinada, da traição ( que nunca ocorreu), de Anete.
Zuleika prestou atenção, abraçou o cunhado demoradamente dizendo...
É Severo, bem que eu desconfiava que Anete não fosse lá estas coisas, fazer
o que não é ela fraquejou...
Imagine trair um homem tão bom como tu!
Severo relatou a solidão da prisão, mas em nenhum momento demonstrou arrependimento,
até porque na sua concepção lavara ( estupidamente) a honra.
Ao final da visita implorou para que Zuleika voltasse pelo menos uma vez por mês.
Exausta, após três conduções lá estava de volta ao lar ( da irmã), subtraído deslavadamente
não conseguia parar de pensar no abraço de Severo, fantasiou, adormeceu, sonhou...
Passou a visitá-lo quinzenalmente.
Os sobrinhos quando souberam deixaram a moradia.
No terceiro mês oferecida como nunca ao despedir-se do cunhado tascou um beijo.
Severo endoidou - desta vez de paixão.
Sentia o corpo em brasas, as horas paradas.
Passou a viver em função das visitas.
Criou coragem, marcou visita íntima.
Fizeram amor como nunca.
Entre beijos e carícias a ordinária sussurrava
no ouvido do amado...mas como Anete pode te
trair meu amor...
Perto do Natal, a notícia – estava grávida!
Quando contou para Severo este abriu um sorriso maior do que a boca da noite!
Sentiu-se remoçado, esqueceu repentinamente dos filhos que o abandonara - decidiu
que a sua vida recomeçaria naquele momento, mesmo privado da liberdade.
Pediu Zuleika em casamento, pouco se importando com a diferença de idade.
Ele perto dos sessenta, ela com trinta e quatro...
Casaram-se no presídio.
No quinto mês de gestação soube que seria uma menina.
- Severo - disse toda dengosa.
Pensando bem amor, temos que perdoar...
Quero homenagear minha irmã, a pecadora que te colocou aqui, você sabe o sangue
fala mais alto, depois “mainha” sempre ensinou que devemos ser unidos..
Nossa filhinha terá o nome parecido com o dela – Janete.
Diz que concorda, diz!
- Você escolheu minha flor, tá escolhido – Janete.
- Presente de aniversário, a menina veio ao mundo no dia em que Severo completou
sessenta anos – tempo de recomeçar segundo o apaixonado casal.
No quarto aniversário da pequena foi colocado em
liberdade.
Zuleika, grávida do segundo filho combinou que
esperaria o amado em casa, nas primeiras horas da manhã...
Acordou mais cedo, preparou a mesa – aipim, bolo de puba, tapioca, manteiga de garrafa – do
mesmo modo que Anete preparava.
Apressou-se em sumir com os porta retratos, não queria nada de Anete na nova vida.
Querida estar bonita!
Nos guardados da irmã, confrontando com as fotos antigas, descobriu o vestido de noivado.
Experimentou – um pouco justo, estava no quarto mês de gestação.
Feliz como nunca diante do retorno de Severo vestiu-se com a roupa escolhida - cópia
de Anete.
Despachou a filha para a madrinha.
Vida nova - família, amor, saúde, religião.
Tudo perfeito.
Com o plano arquitetado para subtraiu (definitivamente) a identidade da pobre irmã.
Ana Stoppa